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Uma viagem por imagens e sons promovida pelos estudantes de Imagem e Contexto II do Mestrado em História da Arte, Património e Cultura Visual da Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

Montagem: Marília Soares

Supervisão: Hugo Barreira

Universidade do Porto 2023

ATLAS DE MEMÓRIAS
(A)

Como sintetizar a pluralidade e a complexidade da vida e atividade de Abel Salazar (1889-1946), que nos convida a visitar Paris em 1934? Na linha do pensamento de Aby Warburg (1866-1929), e do seu Atlas Mnemosyne, foi criado um mapa mental que nos transporta para múltiplas relações de Abel Salazar com o seu tempo no âmbito da Cultura Visual, com especial destaque para a arte, ciência, pensamento e património. Esta página de um Atlas por escrever, serve igualmente como elemento centrípeto e centrífugo de toda a exposição.

Uma linha do tempo, que se inicia no Minho, com o nascimento de Abel, evoca o seu percurso inicial, na vida e na arte, e a paisagem da qual tantas vezes sentia falta em Paris. Esta linha não tem fim, pois Abel Salazar integra o vasto património material e imaterial da Universidade do Porto e as suas iniciativas culturais. 

A base desta página, material e virtual, é o álbum de recortes de Adelaide Estrada (1898-1979), companheira científica de Abel Salazar, em que estes retalhos da vida e memória de um médico (e não só…) foram condensados. Com ele dialogam livros e reproduções de fotografias e obras que evocam as múltiplas atividades de Abel, o seu legado científico, artístico e filosófico. O centro é Paris, ponto de fuga para Abel em vida, em 1934, e ponto de chegada para o visitante, em 2023. Paris a dois tempos, na perspetiva de um olhar, de uma publicação e de uma importante parcela de uma obra artística. Paris em 1934, numa viagem que começa em 2023, abrindo a porta para tantas outras, em torno de Abel, da sua obra, e da sua presença nos nossos tempos.

 

Propomos, assim, como pano de fundo, uma nova cronologia para Abel Salazar: (1889 - ∞). 

VIAGENS
(V)

Um móvel excêntrico, virtuosisticamente poliédrico, materializa os múltiplos diários de um viajante compulsivo. Nele encontramos algumas das obras pintadas em Paris e que, como tantas vezes acontece em Abel Salazar, são camadas múltiplas de escrita. Quer sejam pinturas parisienses, em que um conjunto de escritas nos transporta para as viagens e vida dos objetos artísticos. Quer seja o críptico verso de uma pintura, ele mesmo espaço pictórico para uma dupla imagem. Sobre as impressões da viagem – Paris em 1934 – na sua segunda edição, uns óculos interrogam-nos metaforicamente sobre a natureza do olhar, convidando-nos a contornar a pintura e descobrir a face convencionada. 

Num espaço intermédio repousa um conjunto de reproduções de cartas e postais enviados por Abel a partir de Paris, juntamente com um bilhete de lotaria e todo um conjunto de registos e impressões mais ou menos fugazes que evocam o lugar da escrita na prolífica expressão de Abel Salazar.

 

Em baixo, um museu imaginário, espécie de vanitas, onde o visitante é convidado a pensar o seu lugar enquanto viajante num caminho sem início e sem fim. A grafonola, com os discos de goma-laca, que evocam os registos musicais que animavam a Cidade-Luz, uma máquina fotográfica, em que a imagem-tempo se cristaliza na imagem-espaço. Com estas invenções da modernidade burguesa, nem sempre vistas à mais favorável das luzes por Abel, convive a evocação da dupla exposição de Honoré Daumier (1808-1897), que tanto o marcaria na sua estadia em Paris e na sua expressão plástica em que tempos, modos, estéticas e olhares se fundem e convivem no ecletismo e na experimentação. Por fim, um convite para outras viagens, Itália, Alemanha, impressões de uma Europa que sentiria a impiedosa marca da centelha humana, na mais fulgurante e na mais horrenda das suas expressões. 

LABORATÓRIO
(L)

Uma mesa de desenho convida o visitante à interação, à materialização em múltiplas expressões. Tal como para Abel Salazar, o laboratório era um espaço de múltiplos encontros. Nele poderíamos percorrer a mais meticulosa das observações científicas ou o mais turbulento dos processos de experimentação plástica. Para o visitante, a imaginação é o limite e os objetos apenas pretextos para a viagem que pretende começar. 

TEMPOS
(T)

Paris em 1934 é, como se disse, uma viagem em múltiplos tempos que, do presente, se fragmenta e reencontra em múltiplas imagens e corpos. No centro e nas margens. Uma pintura, aparentemente igual a tantas outras que vemos na sala, conserva a única moldura que sobreviveu do tempo do próprio autor. Corpo, meio e imagem fundem-se simbolicamente numa coquette parisiense em que o olhar do seu criador adquire uma dimensão háptica de relíquia de contacto. Paralelamente, a imagem desmaterializa-se num conjunto de imagens em que sucessivos olhares revisitam Paris, conjugando representações autênticas e representações, partindo da cidade que Abel conheceu, nas vésperas da Exposição de 1937, mescladas com registos do próprio visitante e impressões de tantos outros. Embala-nos a música de Claude Debussy (1862-1918), interpretado por Alfred Cortot numa gravação dos anos 30, um favorito de Abel, que se deixa perturbar pelo jazz que tão pouco apreciou na sua estadia em Paris.    

REPRESENTAÇÕES
(R)

Neste espaço o visitante é convidado a um olhar intimista sobre a própria viagem. Paris em 1934 está presente nas fotografias cujo pequeno formato nos obriga a um modo de ver cuidadoso e a uma articulação com as suas palavras, tantas vezes de acérrima crítica dos lugares onde posou para a câmara. Convivem os desenhos das parisienses, oscilantes entre a elegância e a caricatura, como o próprio autor as caracterizava, mas onde vemos também as mulheres trabalhadoras do torrão natal, na sombra da sofisticação superficial da cidade-luz. O traço bem apreendido de Daumier espreita abundantemente. Encontram-se ainda catálogos de várias exposições em que Abel Salazar participou, inclusivamente como ilustrador, e onde a mulher tem também um lugar de destaque, quer como modelo, quer como artista. Entre estes fragmentos de uma vida artística figura uma exposição póstuma, realizada na Casa-Museu Abel Salazar, em 1989. 

EXÍLIO-REFÚGIO

No canto da Sala do Fundo Antigo, um espaço que se apresenta como uma enorme vanitas, em que a efemeridade da vida parece dominar o visitante, representada em atributos numa involuntária recriação de um género pictórico destinado a recordar o observador da sua condição de mortal.  As múltiplas relações com o tempo e com o espaço, como as paredes forradas de livros de diversas cronologias, os dois oitocentistas globos, ou uma pêndula, sem ligação direta com Abel Salazar, constituem um recanto que evoca os seus exílios-refúgios, dos quais Paris em 1934 foi apenas um de vários. Este canto de meditação, em que a cidade se descobre ao fundo, fantasmática, é um convite ao ensimesmamento e ao repouso, de costas voltadas para o ruído dos cafés e do bulício da urbanidade. 

MATERIALIDADES
(M)

Por fim, convidamos o visitante a um momento de experiência com as mais diretas manifestações das materialidades plásticas de Abel Salazar. Aqui, as representações cedem lugar à pintura, num novo e último olhar poliédrico. A pintura e o pintor estão aqui no mesmo plano, sob a mesma superfície. O que se separa uma tábua pintada de uma pintura? Quando se torna um conjunto de materiais uma representação? Qual o lugar do desenho e da mancha? Que diferenças encontramos entre o nobre riscador do desenho artístico e o vulgar lápis da mais utilitária das anotações? Estas questão, tantas vezes evocadas por um Modernismo com o qual Abel Salazar não se identificava particularmente, são algumas das múltiplas interrogações que podemos evocar no tempo desta exposição. Elas devolvem-nos para o centro da sala, para a página do Atlas por escrever, em que, muitas vezes, o que separa o lugar de um objeto no extenso santuário patrimonial da Humanidade é um olhar mais demorado, um modo de ver mais atento e empático e uma consciência mais atenta à inquietação da dúvida, que à falsa serenidade da certeza. 

TÂNAGRAS

Mas pensava o visitante que estava sozinho? Doce ilusão de uma Paris de bilhete-postal, feita de sonhos e de superficialidades. O que nos traz aqui senão a pintura? E logo numa exposição sobre as impressões de uma viagem à capital das artes e da sofisticação europeias. Rodeiam-nos diversos óleos de Abel Salazar pintor nas suas mais vívidas e impactantes impressões plásticas de Paris: as suas Tânagras e os ambientes mundanos dos cafés, cabarets e galerias. Olhando-nos ou desviando o olhar, a Tânagra, evocação de figurinha artística, encontra o seu esplendor nas palavras do mesmo pulso que lhes deu pictórica vida, e com a qual encerramos esta viagem, com o convite à leitura de Paris em 1934:

“O espetáculo dos boulevards, e dos cafés, é uma verdadeira, uma autêntica palhaçada, sem que este termo em nada seja forçado; porque à extravagância coquette e petulante das preciosas se junta, em contraste, a estapafúrdia fantasia dos elegantes. (…) E o centro vivo deste quadro animado é ela, a Tânagra, na sua esguia silhueta de parisiense racée, mais egípcia de linha do que helénica, mas com esse carácter típico das raças loiras, esplendentes de carnação luminosa sob os cabelos de ouro. (…) Eis que todas elas, em vez de andar, quase dançam, ondulando como serpentes, sob a pressão reveladora dos tecidos no despido provocante da toilette. (…) Talvez inconsciente, necessária à própria maneira de ser mulher, necessária talvez ao fluxo da vida, natural, intuitiva, espontânea como as flores - essa coquetterie constante não deixa, porém, de ser uma provocação contínua, uma contínua excitação." 

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